segunda-feira, 24 de junho de 2013

A odontologia militante


Crõnicas de militante


Em 1988 tentávamos aprovar na Assembleia Nacional Constituinte a anistia para os empregados das estatais demitidos por participarem de greves. Na prática, precisávamos aprovar uma proposta de emenda ao texto base de Constituição que estava em votação. A proposta, por sua vez, era a consolidação de outras emendas, de diferentes parlamentares, um mecanismo que foi chamado de “fusão de emendas”. Nem todos os parlamentares que contribuíam com suas propostas para uma fusão empenhavam-se na aprovação da resultante. Era comum a proposta resultante de fusão de emendas ter um patrono, geralmente um dos parlamentares que contribuiu para a fusão e que tinha efetivamente o interesse na sua aprovação. O patrono ficava responsável por negociar adesões e realizar todas as mediações necessárias entre o Congresso Constituinte e a base de interessados na aprovação da emenda, no caso, os trabalhadores das estatais.

O patrono da emenda da Anistia foi o deputado João Paulo, do PT/MG,  que abraçou a causa. No Congresso já contávamos com uma infraestrutura viabilizada pelo PDT que nos permitiu o uso de salas da Comissão do Trabalho, e ocupamos, também,  o gabinete do nosso patrono. Atuávamos como seus assessores, e a sua agenda era praticamente determinada pela comissão de trabalhadores que tratava o assunto, naturalmente com participação e consentimento do deputado. Definíamos estratégias de abordagem, elaborávamos material para orientar a intervenção dos voluntários novatos e fazíamos visitas a parlamentares. Ao final do dia tínhamos histórias para relatar, prestar contas das tarefas e avaliar os trabalhos.

Também definíamos ações que só poderiam ser realizadas pelo patrono da emenda, algumas junto a outros Constituintes e algumas dentro do seu próprio partido que também tinha outras prioridades e que também requeria a atuação do deputado. Nos finais de semana havia recesso parlamentar e descanso para os militantes cuja tarefa principal era a abordagem e visitas aos gabinetes, mas ainda assim havia material para preparar, para imprimir, contatos para fazer e tudo tinha que ser realizado em sintonia com o patrono da emenda que também passava o fim de semana atolado em atividades.

Num certo fim de semana o nosso patrono informou que precisava visitar sua cidade, e isto foi um problema porque precisávamos dele em Brasília. Contestamos, argumentamos, queríamos saber o que era tão importante. O deputado informou que não estava suportando o incômodo de um dente quebrado ou rachado. Ele estava adiando, mas precisava de um dentista. Disse que conseguiu agendar uma consulta especial em sua cidade, mesmo no fim de semana, uma oportunidade que ele não poderia perder. O grupo insatisfeito, mas compreendendo a situação, cedeu em suas argumentações. Quase todos calaram, mas um companheiro fez mais uma investida. Sem constrangimentos, sugeriu ao deputado que fizesse uma gambiarra no dente ou na prótese, colando-a com superbonder como ele próprio, nosso companheiro já havia feito.

Para endossar a sua proposta, enfiou dedos na boca e retirou um pivô ou coisa que o valha e exibiu na palma da mão para o deputado e para nós demonstrando como ele colou o próprio dente e a sua proposta poderia se viabilizar. Ficamos mudos. Todos. O deputado, literalmente, de boca aberta. Não acreditava no que estava vendo e ouvindo, até que alguém abraçou camaradamente o companheiro, propôs que saíssemos da sala e encerrássemos a reunião liberando nosso patrono para a sua viagem.

Nosso companheiro, protético eventual, esclareceu que o seu objetivo era dar mais uma contribuição. Ele sempre foi uma referência entre os demais militantes. Participamos de mãos dadas e choramos juntos na votação que aprovou a emenda da Anistia e ele ficou lembrado como um dos símbolos daquela vitória que foi mérito de tantos militantes. 

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