Crônicas de militante
Havia um saco cheio de
leiteiras de alumínio que compramos em uma loja de 1,99. Elas eram fininhas,
mais um pouco e pareceriam embalagens de quentinhas. Seriam utilizadas num “panelaço”,
uma manifestação dos empregados que faziam o serviço de limpeza nos prédios e
que não conseguiam receber os seus vales refeição e transportes. Aqueles
trabalhadores eram tratados como de “segunda categoria” em quase todas as
grandes empresas, estatais ou privadas. Não eram empregados efetivos porque o
serviço era terceirizado, e as empresas detentoras dos contratos de
terceirização não passavam de arapucas que atuavam sem contestações e
submetendo seus empregados a relações de trabalho degradantes.
Naquelas empresas os
compromissos trabalhistas raramente eram cumpridos, e quando elas não
conseguiam renovar seus contratos, os trabalhadores ficavam a ver navios,
contando com a admissão na nova empresa que assumiria o contrato. Neste
processo, quando não havia descontinuidade no salário, muitos empregados sequer
tinham noção que trocaram de patrão. Quando não era assim, os trabalhadores abriam
mão dos seus direitos submetendo-se às chantagens da empresa que perdeu o
contrato, sob pena de perderem os prazos de desligamento e a transferência para
a nova empresa. Recurso posterior nem pensar. Seus sindicatos também eram uma
farsa, além do mais, era comum as empresas que perdiam um contrato simplesmente
desaparecerem do mapa, escritório fechado, e pronto.
Na Embratel os trabalhadores
da limpeza encontraram na Associação um apoio porque, mesmo sem qualquer poder
de representação formal, usávamos a força política disponível, ora tentando
fazer com que a Embratel incluísse nos contratos de terceirização as obrigações
das contratadas para com os seus empregados, ora cobrando diretamente destas
últimas o cumprimento das referidas obrigações. E foi neste cenário, num
criminoso e infindável atraso no fornecimento de vales refeição e transporte,
que deliberamos realizar o panelaço na porta da empresa, num local por onde
passariam os empregados efetivos, gerentes de vários níveis, além de
transeuntes e passageiros que entravam e saíam na estação do Metro.
Iniciamos o ato.
Concentração, batidas de panelas e discursos para esclarecer o motivo da
manifestação. Percebemos, então, que o panelaço estava mixuruca, longe do
efeito desejado. Um barulho tímido, como se o pessoal estivesse temeroso ou
desistido de prosseguir com o ato. Onde erramos? Avançamos demais e desgarramos
da vontade da galera? Isto seria ruim e comprometeria a atividade. Mas,
felizmente, a nossa ficha logo caiu. A moçada não queria amassar as leiteiras
que receberam novinhas em folha. Eram leiteiras de 1,99, mas não percebemos que
elas tinham valores diferentes para nós, os militantes, e para os demais
trabalhadores que, acertadamente, pensavam duas vezes antes de amassar as
leiteiras no panelaço. Acho que não percebemos isto por soberba, e estivemos no
limiar de também tratá-los como trabalhadores de segunda categoria.
Eles nos olhavam com um
misto de cumplicidade e ironia. Reconheciam-nos como companheiros que estavam
ali, juntos, num gesto de solidariedade incomum para a experiência deles, mas
não estavam a fim de amassar as leiteirinhas que receberam e queriam levá-las para
casa, as mesmas que tratávamos como descartáveis. Feita a descoberta, acertamos
um meio termo: máximo barulho com prejuízo mínimo para as leiteiras. E realizamos
a manifestação, aquela e muitas outras. Avançamos em alguns pontos e perdemos
em muitos. A farsa da “terceirização” ainda é prática recorrente nas empresas.
Nosso equívoco foi
engraçado, mas foi também uma lição. Vivendo em condições privilegiadas e
querendo mudar o mundo, devemos avaliar se as leiteiras que precisarão amassadas
tem o mesmo valor para todos os envolvidos na luta, mesmo que sejam canequinhas
de 1,99.
Nossa! Perfeito. Isso é o que se pode chamar de aprendizado da mão na massa. Quando há respeito e limites, isso não atrapalha o progresso e a construção de interesse coletivo, não é? Abrçs. Vera.
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