segunda-feira, 3 de junho de 2013

“Um e noventa e nove” também é “quase dois”

Crônicas de militante

Havia um saco cheio de leiteiras de alumínio que compramos em uma loja de 1,99. Elas eram fininhas, mais um pouco e pareceriam embalagens de quentinhas. Seriam utilizadas num “panelaço”, uma manifestação dos empregados que faziam o serviço de limpeza nos prédios e que não conseguiam receber os seus vales refeição e transportes. Aqueles trabalhadores eram tratados como de “segunda categoria” em quase todas as grandes empresas, estatais ou privadas. Não eram empregados efetivos porque o serviço era terceirizado, e as empresas detentoras dos contratos de terceirização não passavam de arapucas que atuavam sem contestações e submetendo seus empregados a relações de trabalho degradantes.

Naquelas empresas os compromissos trabalhistas raramente eram cumpridos, e quando elas não conseguiam renovar seus contratos, os trabalhadores ficavam a ver navios, contando com a admissão na nova empresa que assumiria o contrato. Neste processo, quando não havia descontinuidade no salário, muitos empregados sequer tinham noção que trocaram de patrão. Quando não era assim, os trabalhadores abriam mão dos seus direitos submetendo-se às chantagens da empresa que perdeu o contrato, sob pena de perderem os prazos de desligamento e a transferência para a nova empresa. Recurso posterior nem pensar. Seus sindicatos também eram uma farsa, além do mais, era comum as empresas que perdiam um contrato simplesmente desaparecerem do mapa, escritório fechado, e pronto.

Na Embratel os trabalhadores da limpeza encontraram na Associação um apoio porque, mesmo sem qualquer poder de representação formal, usávamos a força política disponível, ora tentando fazer com que a Embratel incluísse nos contratos de terceirização as obrigações das contratadas para com os seus empregados, ora cobrando diretamente destas últimas o cumprimento das referidas obrigações. E foi neste cenário, num criminoso e infindável atraso no fornecimento de vales refeição e transporte, que deliberamos realizar o panelaço na porta da empresa, num local por onde passariam os empregados efetivos, gerentes de vários níveis, além de transeuntes e passageiros que entravam e saíam na estação do Metro.

Iniciamos o ato. Concentração, batidas de panelas e discursos para esclarecer o motivo da manifestação. Percebemos, então, que o panelaço estava mixuruca, longe do efeito desejado. Um barulho tímido, como se o pessoal estivesse temeroso ou desistido de prosseguir com o ato. Onde erramos? Avançamos demais e desgarramos da vontade da galera? Isto seria ruim e comprometeria a atividade. Mas, felizmente, a nossa ficha logo caiu. A moçada não queria amassar as leiteiras que receberam novinhas em folha. Eram leiteiras de 1,99, mas não percebemos que elas tinham valores diferentes para nós, os militantes, e para os demais trabalhadores que, acertadamente, pensavam duas vezes antes de amassar as leiteiras no panelaço. Acho que não percebemos isto por soberba, e estivemos no limiar de também tratá-los como trabalhadores de segunda categoria.

Eles nos olhavam com um misto de cumplicidade e ironia. Reconheciam-nos como companheiros que estavam ali, juntos, num gesto de solidariedade incomum para a experiência deles, mas não estavam a fim de amassar as leiteirinhas que receberam e queriam levá-las para casa, as mesmas que tratávamos como descartáveis. Feita a descoberta, acertamos um meio termo: máximo barulho com prejuízo mínimo para as leiteiras. E realizamos a manifestação, aquela e muitas outras. Avançamos em alguns pontos e perdemos em muitos. A farsa da “terceirização” ainda é prática recorrente nas empresas.

Nosso equívoco foi engraçado, mas foi também uma lição. Vivendo em condições privilegiadas e querendo mudar o mundo, devemos avaliar se as leiteiras que precisarão amassadas tem o mesmo valor para todos os envolvidos na luta, mesmo que sejam canequinhas de 1,99.

Um comentário :

  1. Nossa! Perfeito. Isso é o que se pode chamar de aprendizado da mão na massa. Quando há respeito e limites, isso não atrapalha o progresso e a construção de interesse coletivo, não é? Abrçs. Vera.

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