domingo, 5 de novembro de 2017

Ainda sobre Telecomunicações

Opinião

Essas notas são comentários, não são uma tese. Logo não houve a preocupação de incluir bibliografia nem referências para sustentar as afirmações – embora elas existam.
O texto trata primeiro sobre as privatizações de maneira geral e, depois, sobre o caso das Telecom que é o objetivo original.

As privatizações
As privatizações não foram uma exclusividade do Brasil. Ocorreram no âmbito da chamada globalização, um termo que dominou a década de 80 do século XX e que resumia os objetivos das grandes corporações capitalistas que se representavam politicamente através das plataformas dos governos Reagan (EUA – 1981 a 1989) e Tatcher (Inglaterra – 1979 a 1990). Plataformas que receberam o cunho de neoliberais.
Na linha do pensamento neoliberal, a globalização do capital impunha a quebra total das barreiras comerciais entre as nações e a retirada do Estado de qualquer atividade que não fosse a prestação dos serviços essenciais, privatizando-se todos os recursos públicos que não tivessem tais finalidades. Essas pressões se fizeram sentir por todos os países ocidentais, incluindo o Japão, que trataram o assunto de formas distintas. Foi um processo que está registrado em farta e consistente bibliografia, tanto em seus aspectos gerais, como em suas peculiaridades. Não há, aqui, a pretensão de se fazer uma análise da sua história nem do seu mérito.
Um fato que o tempo tornou evidente é que a “globalização” foi uma espécie de início da derrocada do Estado de bem estar social implantado nos países centrais da Europa pela social democracia e que servia como uma espécie de meta desejada pelas sociedades das economias periféricas.
As sociedades dos países centrais já amadurecidas e organizadas politicamente questionaram o movimento de globalização e impuseram condições aos seus governos buscando resguardar os ganhos que haviam conquistado e que as corporações capitalistas tentavam retirar. Afinal, o bem estar social do pós-guerra na Europa foi uma conquista dos trabalhadores que não só bancaram a guerra, como também bancaram a construção de uma infraestrutura de bens e recursos para a obtenção de serviços públicos. Não estavam dispostos a entregar suas conquistas de bandeja nos processos de privatizações. E não o fizeram.
Contudo, nos países periféricos (Brasil entre eles), com sociedades sem organização política suficiente, longe ainda de usufruir das facilidades do bem estar social europeu, muitas delas (sociedades) ainda saindo de longas ditaduras sustentadas exatamente pelos países centrais, sem identificar o estatal como público, e com governos que não passavam de satélites distantes dos governos dos países centrais, valeu a regra do privatizar tudo.
No Brasil, com uma potente infraestrutura nos setores de mineração, processamento industrial, energia, telecomunicações e petróleo, entre outras, toda ela de propriedade estatal porque foi construída com a riqueza decorrente do trabalho de sua população, com poucos exemplos significativos de infraestrutura de porte resultante de investimentos externos, mas governado por grupos sem qualquer projeto estratégico nacional, a palavra de ordem foi leiloar tudo – i n c o n d i c i o n a l m e n t e.
Tudo que foi possível foi entregue ao capital privado sem qualquer condicionante que garantisse o desenvolvimento nacional. Só não foi entregue o que não deu tempo de entregar. Mas, o projeto sempre foi entregar tudo, até mesmo as agências de fomentos financeiros como o Banco do Brasil e o BNDES.
Esse projeto foi liderado e executado pelo partido PSDB nos governos FHC, porém a eleição posterior de um governo do PT, apesar de frear o ímpeto privatista, não alterou significativamente o quadro. É verdade que FHC já tinha entregado quase tudo, mas embora de características populares, os governos Lula e Dilma assumiram compromissos de não reverter nem redirecionar a direção apontada do PSDB. Pior, prosseguiram com os leilões de áreas petrolíferas, na prática consolidando a privatização do petróleo instituída pelos tucanos.

As Telecom
O Brasil com um território imenso contava na década de 80 com uma rede nacional de Telecom que abrangia todo o território nacional. Uma rede que incluía sistemas modernos e com tecnologias de ponta incluindo laboratórios de pesquisas e de desenvolvimento, sistemas de cabos submarinos internacionais e sistema de satélites em consórcio com outros países (Intelsat) e de propriedade exclusivamente nacional (Brasilsat), este último, lançado em 1985, garantia a cobertura de Telecom em toda a região amazônica. Toda essa rede de Telecom compunha o sistema Telebrás que era uma holding de operadoras de âmbitos estaduais (as chamadas Teles), além de uma empresa operadora das redes interestaduais e internacionais e do sistema de satélites (a Embratel). Todo esse sistema era estatal. Tanto a propriedade dos meios como o direito a exploração dos serviços.
A manufatura equipamentos, partes, peças e componentes – a indústria de Telecom - por sua vez, era de propriedade privada e controlada por grupos multinacionais, por alguns grupos exclusivamente nacionais e outros de parcerias de capital nacional e internacional - sem a participação Estado.
Os serviços de difusão de imagens e de áudio (televisão e rádio) eram explorados por grupos privados sob a forma de concessão, e os demais serviços de Telecom eram fornecidos exclusivamente pelo Estado.
Imaginando-se a rede de Telecom como um arranjo de “nós”, que são as centrais de Telecom, interligados por sistemas de transmissão, é a tecnologia dos equipamentos nesses “nós” e a qualidade das interligações quem determina as possibilidades de ofertas dos vários tipos de serviços. No início dos anos 80 o serviço básico oferecido, não apenas no Brasil, mas em todo o mundo, era o serviço de telecomunicações individual e bidirecional de voz chamado de “telefonia”, e nessa época iniciava a demanda por um novo serviço que era a comunicação entre processadores e computadores eletrônicos - a comunicação de dados. Esse novo serviço, ainda embrionário, já era apelidado de “filé mignon das Telecom”.
Para o uso de qualquer desses serviços era (e é) necessário, naturalmente, o usuário acessar o sistema de Telecom e isso era realizado através de fios de cobre estendidos sobre postes ou enterrados em vias subterrâneas. .
O ideal – imaginado como meta internacional – era a universalização do acesso, ou seja, qualquer pessoa deveria ter acesso aos serviços de Telecom, que na época era o serviço de telefonia. Mesmo que individualmente houvesse dificuldade, no mínimo deveria haver acessos através de terminais públicos que no Brasil eram os “orelhões”. E os padrões internacionais diziam que nos centros urbanos deveríamos ter sempre um orelhão ao alcance da vista.

Pausa:
Estamos no final da década de 80. Não existia esse negócio de celular, computadores pessoais e internet. Eles já irão aparecer, nessa ocasião estavam pipocando aqui e acolá, pelo mundo.

O Sistema Telebrás
O sistema de Telecom nacional que compreendia todo o sistema Telebras tinha algumas características especiais:

a) Era um sistema autosustentado – não dependia de investimentos externos – trabalhava com um mecanismo chamado autofinanciamento. O assinante do serviço adquiria uma linha física (não existia celular) e recebia em troca ações da Telebras;

b) Era lucrativo no sentido comercial (lucro operacional líquido) como também era um dos principais contribuintes de impostos, além de praticar tarifas extremamente baixas se comparadas com referências internacionais.

c) Tinha um enorme déficit de linhas de acesso aos nós das suas redes, consequentemente havia uma baixa taxa de terminais por habitantes – nem chegava perto dos países centrais – em que pese a abrangência e qualidade da sua rede. Aumentar o número de terminais era um processo difícil em qualquer lugar. Significava construir redes urbanas, esburacar ruas e projetar e instalar redes para um horizonte mínimo de 30 anos. Como essa demanda não era atendida, o preço de um terminal era altíssimo. Faltavam telefones. Havia negociações em mercado paralelo, e uma aquisição formal só ocorria nas oportunidades de planos de expansões das empresas.

d) Contraditoriamente, havia recursos para as expansões. Porém, o(s) governo(s) proibiam o sistema Telebrás de investir os próprios recursos na expansão do sistema e no atendimento à carência de terminais. O lucro dos serviços de Telecom era alocado em outras áreas, enquanto a população reclamava da falta de telefones. Isso, naturalmente, não ocorria por acaso ou incompetência governamental, resultava de uma ação premeditada para atribuir a carência de terminais ao caráter estatal do sistema. O “filé mignon” já era objeto de desejos.

O impacto tecnológico
Foi nesse cenário que o desenvolvimento tecnológico provocou um enorme impacto em todo o mundo. A viabilização de pequenas redes cujos “nós” eram acessados via rádio e interconectados entre si, como se fossem células em uma colmeia de abelhas, dispensou a necessidade das linhas físicas para acesso às centrais da grande rede de Telecom. Diminutos terminais com enorme capacidade de processamento viabilizada pela microeletrônica e com um número cada vez maior de funcionalidades implementadas por programação, por softwares chamados de “Aplicativos”, dispensaram os cordões umbilicais de cobre ou mesmo de fibras ópticas de tão difícil instalação e expansão que caracterizava a telefonia fixa. Até o termo Telefonia Móvel foi abandonado e substituído por Telefonia Celular.
As favelas, os conglomerados urbanos, os locais de difícil acesso, os grandes condomínios, as pessoas individualmente e até outras máquinas poderiam se conectar e falar em rede, sem a necessidade de esburacar e garimpar as vias de acesso. Era a grande oportunidade para as escolas, os hospitais, as repartições públicas – o Estado poderia, finalmente, não apenas resolver as suas pendências com a sociedade, mas dar um enorme salto qualitativo no atendimento aos serviços públicos porque tínhamos um sistema de Telecom com padrão de qualidade internacional, estrutura funcionando muito bem, profissionais capacitados, mercado interno também para a comercialização, e não apenas para os serviços de voz, mas para qualquer tipo dos serviços que começaram a surgir.

E foi nessa hora que o governo brasileiro – após cerca de 15 anos de resistência dos trabalhadores (Ver Nota ao final) que lutavam pela preservação estatal do setor - entregou ao capital privado o seu sistema de Telecom e privatizou, em 1998, o sistema Telebrás.

Um erro frequente
O advento de novas tecnologias tornou o acesso à rede de Telecom um fato banal e a universalização do acesso viável, desde que existisse um projeto para tal.. O mundo inteiro foi afetado por esse impacto tecnológico – as nações pobres e ricas. As tribos africanas, grupos armados extremistas escondidos nos mais distantes rincões, as gangues nos guetos urbanos, as cidades nos confins da China. Os estádios de futebol e as festas no mundo inteiro – todos acessam as redes via celular.
As novas tecnologias impactaram o mercado de trabalho, os comportamentos pessoais e de grupos, as relações familiares e sociais, até a cultura de um grupo social. No Brasil já existem mais de 20 milhões de pessoas que nasceram sob esse cenário e que são os chamados nativos digitais. Até doenças típicas já foram desenvolvidas nessas populações. Porém, esse encontro de interesses (privatização) e circunstâncias (boom de nova tecnologia) não foi casual, embora ainda existam os que equivocadamente associam esse fato à privatização das Telecom. Ainda é frequente, no Brasil, ver alguém apontando o cenário decorrente da revolução tecnológica, que impactou todos os continentes, como sendo um fruto da privatização das Telecom e que a justifica. Porém, trata-se apenas de uma ignorância de acontecimentos históricos ainda recentes.

O custo da privatização das Telecom
Na época da privatização as posições estavam polarizadas. Era privatização versus monopólio, o que é natural em disputas desse porte. Não há espaço para desdobramento de propostas. Certamente haveria espaço para a construção de modelos diversos, desde que se mantivesse o poder de barganha do Estado como ocorreu em outros países. Mas, aqui não ocorreu assim. Tudo foi entregue de mãos beijadas, e nem está sendo valorizado aqui os aspectos criminosos do processo de privatização.
Apenas para registro, o presidente FHC foi gravado em conversas com o então Ministro das Comunicações, Mendonça de Barros, sobre o arranjo que fizeram viciando o leilão de privatização das Telecom. O episódio ficou conhecido como “o grampo do BNDES” – busquem no Google - e provocou a demissão do Ministro das Comunicações, do presidente do BNDES e de diretores do Banco do Brasil.
O fato é que sistema Telebras foi esquartejado de qualquer jeito em pacotes de empresas para serem vendidas e todas foram leiloadas sem nem mesmo o registro do patrimônio que estava sendo entregue (para saber mais veja-se a questão recente sobre a doação chamados bens servíveis). O governo promoveu-se um tarifaço, antes dos leilões, para tornar o negócio ainda mais interessante, e abriu mão de exigir qualquer compromisso ou contrapartida dos compradores.
A sociedade ficou a ver navios, ou melhor, sem ver os navios, porque até mesmo serviços estratégicos (militares) foram entregues aos novos operadores.

Resultados
O resultado está ai. Pagamos uma das maiores tarifas do mundo por serviços de Telecom, as fábricas foram transformadas em meras montadoras, e junto com elas foram as possibilidades de aprimoramento e de formação profissional. Os estudantes de nível médio e universitário não dispõe de laboratórios nem ambientes para conhecer e complementar suas formações – suas escolas e universidades não estão equipadas, e o acesso aos ambientes privados são restritos ou apenas proibidos.
Os hospitais, as escolas e as repartições públicas não têm prioridades no atendimento e provimento de serviços de telecom. Desde 2010 o governo tenta implantar um Plano Nacional de Banda Larga que garanta a universalização do acesso público a serviços de qualidade (a velocidade é um fator de qualidade) porque os frouxos compromissos de universalização foram simplesmente desconsiderados. A Telebrás, morata com a privatização, teve que ser exumada e, recentemente, o governo ainda teve que bancar o lançamento de um satélite – outro porque o sistema de satélites nacionais foi leiloado.
Quase todas as empresas leiloadas e seus compradores protagonizaram casos escandalosos de artimanhas financeiras ou corrupção. As operadoras atuais de serviços de Telecom são as campeãs de reclamações e a maior delas está na iminência de falir – conseguiram falir um negócio que sempre foi caracterizado como o terceiro melhor negócio do mundo. O primeiro era considerado o petróleo e o segundo era o petróleo mal administrado.
Os orelhões que poderiam ser instrumentos de acesso público aos serviços de alta qualidade (internet veloz) – transformados em pontos estratégicos de acessos WiFi - na medida em que são acessos físicos já implantados, estão sendo abandonados e destruídos.
Sem a propriedade do sistema nem condicionantes estabelecidos na privatização a sociedade fica nas mãos das operadoras privadas e da indústria de produtos. A sociedade não dispõe de instrumentos para priorizar soluções nem induzir projetos estratégicos. O Brasil, se quiser, que se vire com essa caricatura, esse arremedo de agência reguladora, essa piada de mau gosto .chamada Anatel que com suas primas “reguladoras” compõem mais um item deplorável das privatizações no Brasil.
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NOTA:
Resistência à privatização das Telecom
O principal núcleo de resistência à privatização das Telecom foi a organização dos trabalhadores do setor num processo que pode ser resumido em três fases. Na primeira fase, início dos anos 80 (governo Sarney), o monopólio estatal dos serviços telefônicos era exercido por todo o sistema Telebrás, mas o serviço de comunicações de dados era exclusivo da Embratel por força de lei ordinária que criou a empresa. As tentativas de privatização visavam o serviço de comunicação de dados – o filé mignon - e iniciaram com a perspectiva de lançamento do primeiro satélite nacional pela Embratel (1985) através das tentativas de grupos privados de se apropriarem da exploração dos serviços de dados via satélite. Nesse projeto, a atuação da Embratel se reduziria à manutenção, operação e aluguel dos equipamentos terrestres e espaciais deixando para a iniciativa privada a exploração dos serviços. O ápice dessas tentativas ocorreu com o a assinatura pela diretoria da Embratel de um contrato ilegal entre a empresa e um consórcio denominado Vicom composto pelos grupos privados nacionais Globo e Bradesco e uma multinacional Victory Comunicações. A reação dos trabalhadores foi uma greve de caráter nacional e de adesão plena (outubro de 1987) que paralisou a empresa e obrigou a anulação do contrato. Esse evento determinou, ainda, a demissão da diretoria da Embratel, não pela assinatura ilegal, mas por não ter conseguido reprimir o movimento dos trabalhadores como era a expectativa do ministro das Comunicações e da diretoria da Telebrás.

A segunda identifica-se com o período constitucional. Impulsionados pela movimentação dos trabalhadores da Embratel, os demais trabalhadores do setor se agregaram à luta para transformar o direito que era exclusivo daquela empresa e estabelecido por uma lei ordinária, em um direito da União estabelecido na Constituição de 88. A campanha, a participação dos trabalhadores, a integração da sociedade e, finalmente, a vitória do monopólio estatal das Telecom ficou instituída como um dos principais marcos registrado nos anais da Constituinte 88.

A terceira fase foi pós-constituinte quando foram rechaçadas as muitas tentativas dos próprios governos em quebrar o monopólio constitucional.  Essas tentativas se deram com a publicação de portarias, decretos e até assinatura de contratos inconstitucionais durante os governos Sarney (até 1990) e Collor (até 1992) todos eles impedidos judicialmente pela atuação dos trabalhadores do setor associada a uma assessoria de excelentes profissionais juristas que se integraram completamente à luta pela defesa do monopólio. A investidas ilegais para a privatização tiveram algum refluxo durante o governo Itamar (1992 – 1995) quando  postos em algumas importantes empresas do sistema Telebras foram ocupados por personagens que não compactuavam com a entrega das Telecom ao setor privado, mas o núcleo privatista, embora  recolhido, manteve-se abrigado no próprio ministério das Comunicações. Findo o governo Itamar, as investidas  retornaram no governo FHC, não mais com atos ilegais, mas como projetos de governo que conseguiu quebrar o monopólio constitucional nos seu primeiro ano de mandato (agosto de 1995) e, finalmente, privatizar o setor com o leilão do sistema Telebrás, em 1998.

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